Minha avó Eulália tem 92 anos. Não anda mais e nem consegue se mexer na cama . Necessita de cuidados todo o tempo. Agora até mesmo a comida é preciso que coloquem em sua boca. Tem dificuldade para engolir, enxergar e cada vez que olho pra ela a vejo um pouco menos presente entre nós. Em contrapartida sua memória e lucidez ignoram o sofrimento do corpo permitindo que lembre de tudo. Todas as vezes que vou visitá-la, com uma voz quase inaudível me pergunta por todos lá em casa, se o Vinícius melhorou, se a minha sogra está bem e tantas outras coisas que recorda.
Meu avô Otávio e Minha avó Eulália
Sofro muito nessas visitas, mas são necessárias, pois sinto o quanto ela fica feliz com a presença dos netos e bisnetos. Sofre muito porque os que moram mais perto são os que menos a visitam. Tem saudade de um tempo em que sua casa era a nossa casa e vivia sempre cheia e todos que chegavam para um cafézinho, agua fresca ou um dedo de prosa eram muito bem vindos.
A mãe de minha mãe é uma pessoa muito especial. Com ela aprendi, através do exemplo e testemunho, a ter fé a despeito de qualquer adversidade ou sofrimento. Teve 10 filhos e hoje lhe restam apenas três. Alguns morreram ainda bebês, num tempo que mortalidade infantil era coisa corriqueira e o acesso a hospitais e médicos, um luxo. Entre tantas histórias sofridas, conta que quando o meu tio Zeca, falecido em 1995 com 46 anos, estava para nascer, trablhou todo dia pilando arroz. Quando não aguientou mais de dor, pediu para a filha mais velha chamar a parteira. Era noite de natal e eu ouvi muitas vezes essa história comovida porque achava muito triste que uma pessoa precisasse trabalhar durante todo o dia de natal num serviço tão extenuante. Trabalhar grávida, aos nove meses, para mim era inconcebível.
Com o Vitor em Santa Tereza-ES, já doente andava com dificuldade
Casou-se aos 15 anos e já perto de dar a luz á sua primeira filha, ficou sozinha em casa, no meio de uma mata com o vizinho mais próximo morando a mais de três horas de distância. A sua sorte foi que sua mãe, numa comunicação visceral que só mães e filhos possuem, foi visitá-la e por lá ficou para ajudar a neta a nascer. Quando o meu avô chegou em casa a minha tia Cristina, que é freira há quase 50 anos, já tinha cinco dias de vida. Conta a minha avó que então ele a abençou, profeticamente disse: Cristina, Deus a crie para o bem.
Os dois com Vinícius em seu primeiro aniversário
Minha avó foi sempre calada, deixando a palavra para as horas certas. Foi casada com meu avô 64 anos, até ele falecer em 1999. Muitas vezes aceitou quieta suas determinações e decisões autoritárias e em outras fingia aceitar e fazia as coisas do seu jeito, o que achava correto. Quando a minha mãe ficou grávida, foi expulsa de casa pelo meu avô, que não tolerava a filha mãe solteira. Depois de três dias do meu nascimento a minha mãe teve que me deixar com uma pessoa e voltar ao trabalho (licença maternidade também era um luxo). A pessoa que ficou por conta de mim, não andava, era paraplégica, tinha um monte de filhos. Acho que aceitou a incubência pela necessidade do dinheiro que minha mãe pagaria por seus serviços e talvez por pena da menina com um bebê nos braços, sem saber o que fazer. Minha tia Luzia ao voltar do colégio passou em frente a casa dessa mulher e ouviu o meu choro desesperado. Contou para a minha avó que imediatamente mandou me buscar para que eu fosse cuidada pela família. Mas e o que fazer com o meu avô que proibiu qualquer ajuda à filha? A sábia decisão de minha avó era que eu seria escondida no quarto a noite quando o meu avô chegasse do trabalho. Assim foram os meus primeiros meses de vida. Até o meu avô se apaixonar pela menininha loira e desdentada que fui e perdoar a minha mãe, minha avó arriscou sua pele e o casamento por nós. Tenho certeza que jamais se arrependeu de sua rebeldia silenciosa.
Desculpe-me o texto tão longo, mas se tratando dessa mulher talvez um livro não baste.